quarta-feira, 13 de abril de 2011

Reflexão sobre E.Kant

A PROPÓSITO DO “ APÊNDICE À DIALÉCTICA TRANSCENDENTAL DE E. KANT”

Carlos Frazão




1. Como aproximação à obra maior de Kant - " Crítica da Razão Pura " (1781) -, refira-se que se a noção de crítica pode assumir vários conteúdos significativos no âmbito do vocabulário filosófico, o que aqui se pretende relevar, numa primeira aproximação, é aquele sentido que foi expresso pelo cepticismo e, numa outra valência, pelo próprio Kant que se opôs a essa intenção gnosiológica. De facto, Sextus Empiricus, um dos maiores representantes da escola céptica, relegou o conhecimento humano para um relativismo generalizado, argumentando com a impossibilidade da razão ir além da aparência das coisas, pois está limitada pelos pressupostos de uma fenomenicidade que a impede de tornar cognoscível a essência do real. Há um convite declarado a uma prática sistemática de epokhé.
A crítica céptica mereceu de Descartes, nas " Meditações Metafísicas" ( 1641), a refutação dos seus princípios, contrapondo com a certeza das ideias claras e distintas, enquanto fundamento lógico-matemático de uma razão universal e absoluta. Por outras palavras, a razão cartesiana é entendida como a faculdade de perceber (por intuição intelectual) clara e distintamente as relações evidentes (contra qualquer dúvida) entre as ideias universais. A dedução lógica colhe a sua certeza no critério de evidência que permite passar das premissas à conclusão. Independentemente de um maior desenvolvimento destas consequências epistemológicas, é importante reter a posição de Descartes no que concerne à origem das ideias, para entendermos com coerência o seu projecto gnosiológico. De um modo sucinto, digamos que, sendo ele o iniciador desta problemática, em termos do discurso filosófico da " modernidade " (particularmente através de Locke), o termo " ideia" designa qualquer conteúdo do pensamento ou da mente que representa algo. Assim, as ideias são sensíveis (adventícias) se provêm da nossa experiência externa, ou são imaginativas (factícias) quando se produzem a partir de outras ideias. Mas esta arquitectura ficaria incompleta se não se admitisse a existência de ideias cuja origem não depende nem da experiência nem da imaginação, ideias que o pensamento possui em si mesmo, inatas, logo claras e distintas. O exemplo é-nos dado quer pelas verdades matemáticas quer pelas noções metafísicas, como a de "alma" ou de "Deus" , mas também pela própria ciência da física, desde o conceito de "extensão" até aos princípios gerais da mecânica.
É, contudo, com Kant que a reabilitação da razão contra o cepticismo vai ganhar particular relevo. Mas o problema não é agora defender as verdades instituídas pela metafísica, a metafísica como sistema, seria cair num outro erro, o do dogmatismo - Hume alertou-o para essa inconveniência -, mas interpelar as próprias possibilidades da razão humana. Trata-se, efectivamente, " de um convite à razão para de novo empreender a mais difícil das suas tarefas, a do conhecimento de si mesma e da constituição de um tribunal que lhe assegure as pretensões legítimas e, em contrapartida, possa condenar-lhe todas as presunções infundadas; e tudo isto, não por decisão arbitrária, mas em nome das suas leis eternas e imutáveis. Esse tribunal outra coisa não é que a própria Crítica da Razão Pura". O objectivo de Kant é, pois, determinar os limites dentro dos quais é possível à razão edificar uma ordem de certezas indubitáveis (de acordo com as regras que serão definidas na Estética Transcendental e na Analítica Transcendental). Esta orientação conduz ao reconhecimento de que a metafísica não pode produzir senão conhecimentos ilusórios (as Ideias da razão, analisadas na Dialéctica Transcendental), presunções infundadas, ao pretender, de modo ilegítimo, ir além dos referidos limites. Tal não significa que o valor das ideias seja inteiramente nulo. Apenas o é enquanto conhecimento científico dos fenómenos, o que não implica que, em relação a um registo diverso, as ideias não possam ter um significado positivo. O que está, primordialmente, em causa para Kant com a sua Crítica é a necessidade de pensar a metafísica como ciência, o que o leva a proceder a uma fundamentação que recusa, como dissemos, tanto o dogmatismo racionalista de Descartes e de Wolff - o representante desta doutrina na Alemanha - como as concepções cépticas e radicais desenvolvidas por Hume. O racionalismo caiu na leviandade de não verificar, por intermédio de uma análise rigorosa da actividade mental e dos seus produtos, a certeza das afirmações metafísicas, diluindo todas as dúvidas a partir da convicção de que sobre o cogito se fundavam, impreterivelmente, as doutrinas da substância pensante, da alma imaterial, de Deus, da matéria. Por outro lado, e não menos importante, ao excluir de toda a actividade conceptual a sensibilidade e a imaginação, o racionalismo tornava-se, de um modo fácil, objecto privilegiado da crítica imposta pelo modelo empirista. Este, por seu turno, conduzia a um cepticismo quando negava a existência de qualquer conhecimento universal e necessário. Os conceitos são apenas simples associações e generalizações empíricas, meros efeitos do hábito e da imaginação. Hume conclui que não podemos ultrapassar a nossa sensibilidade, só conhecemos as percepções, a realidade fica reduzida ao que aparece, ao que se mostra, ou seja, aos fenómenos. Tal fenomenismo extremo não atribui à razão capacidade para ir além da experiência comum, ficando restringida a ela, o que oblitera a possibilidade de constituir todo o conhecimento.
São, pois, estas duas correntes da filosofia moderna que estão na base, por contraposição, da formulação e constituição da filosofia crítica. Aliás, como nos esclarece Gilles Deleuze, na própria definição Kantiana de filosofia é possível identificar a dupla refutação das teses que orientam o cepticismo e o racionalismo dogmático.
2. A questão dos limites da razão coloca-se em função do problema que motiva e dinamiza toda a obra da Crítica: é possível a metafísica como ciência? De outro modo, em que condições é possível pensar a metafísica como ciência? A resposta vai exigir de Kant a análise dos processos fundamentais que estruturam a produção do conhecimento. De facto, é necessário repensar quais as faculdades que permitem à mente humana construir um conhecimento objectivo, ou seja, o conhecimento das coisas em si, coisas que se distinguem na sua essência da faculdade que as apreende. Trata-se, como vemos, de um trajecto que explorando as possibilidades da metafísica, converte esta em crítica da razão, interrogando as suas condições de possibilidade.
A filosofia transcendental desenvolvida na Crítica visa, deste modo, estabelecer um quadro entre as faculdades cognitivas e as suas representações. Kant confronta-se com um problema que não encontrou uma solução aceitável na filosofia empirista: como é possível um conhecimento objectivamente válido, universal e necessário? A análise da experiência revela que a representação não produz os seus objectos, assim como as coisas em si não produzem os conceitos do entendimento. Se entendermos a experiência como a relação entre o sujeito e o objecto, isto é, como o conhecimento que temos das coisas, o problema da crítica Kantiana consiste em indagar como se institui essa relação. A objectividade dos conceitos puros é a objectividade que é determinada nos limites da experiência, não porque eles produzam os seus objectos, mas porque transformam os fenómenos dados na experiência em objectos da representação. É pela análise dos conceitos puros do entendimento, se quisermos, das representações a priori, que poderemos esclarecer toda a problemática que se coloca relativamente às possibilidades e condições de um conhecimento objectivo.
A Crítica da Razão Pura é a explanação sistemática das formas a priori da actividade cognoscente. Dividida em duas grandes partes, Estética Transcendental e Lógica Transcendental, subdividindo-se esta por sua vez, em Analítica Transcendental e Dialéctica Transcendental, a elas dedica Kant, respectivamente, o estudo das faculdades que estão presentes no espírito humano: a sensibilidade, o entendimento e a razão. Como a cada faculdade corresponde uma determinada representação, temos, assim, a intuição, o conceito e a ideia. Rigorosamente, poderemos dizer que existem apenas duas faculdades de conhecimento, a sensibilidade e o entendimento. Este, como faculdade das regras (ou dos conceitos, ou, ainda, faculdade dos juízos) exerce a sua actividade na ordenação dos dados da sensibilidade, enquanto a razão não lida directamente com a experiência, a sua actividade visa a máxima unidade dos conhecimentos do entendimento nas ideias, é a " faculdade dos princípios ".
Mas, pergunta-se, o que poderemos entender por condições a priori do conhecimento? Segundo Kant, tal significa que o espírito intervém na elaboração (estruturação) do conhecimento, o real não está aí, dado a uma mente que o recebe passivamente. A realidade transforma-se por acção de um sujeito cognoscente que organiza activamente o conteúdo que é oferecido pelo caos dos sentidos. São as formas a priori que modelam esse conteúdo, ou seja, as da sensibilidade, numa primeira ordenação (o espaço e o tempo), e as do entendimento, cuja função é compreender o percebido por meio de conceitos (as categorias). Só conhecemos, pois, o real porque o construímos para o conhecimento.
A sensibilidade e o entendimento são, como vimos, as duas fontes que originam todo o acto cognitivo. Contudo, se este começa com a experiência, não se deve concluir, como o fizeram os empiristas, que o conhecimento se reduza aos actos da percepção. É famosa a frase de Kant: " Se, porém, todo o conhecimento se inicia com a experiência, isso não prova que todo ele derive da experiência ". O objecto é dado, efectivamente, à sensibilidade sob a forma das intuições sensíveis, mas é pensado segundo os conceitos (categorias) do entendimento. Tanto as intuições como as categorias não derivam da experiência, mais, são elas que tornam possível a experiência e o conhecimento, são as condições transcendentais, como as denomina Kant.
A doutrina gnosiológica kantiana faz deslocar esta problemática do plano do objecto para o plano do sujeito (revolução coperniciana). Segundo esta perspectiva o conhecimento será transcendental, porque a questão maior da análise diz menos respeito aos objectos, às coisas, que aos conceitos a priori do conhecimento das coisas.
3. Dissemos que o problema central que Kant coloca na Crítica é o da possibilidade da metafísica como ciência. A interrogação só faz sentido, se considerarmos o pensamento Kantiano como um processo que se vai realizando. É ele próprio que refere que Hume o despertou do seu " sono dogmático". Se inicialmente acreditava que o entendimento podia transpor os limites da experiência e construir um saber absolutamente certo e rigoroso, científico, sobre os objectos tradicionais da metafísica - Deus, a liberdade, a imortalidade da alma -, é a dúvida que agora se instala, fazendo-o vacilar acerca destas anteriores certezas trans-fenoménicas. Dúvida que se sustenta, é o próprio Kant que o afirma, no facto da Metafísica, contrariamente às ciências (física, matemática), não suscitar qualquer consensualidade ou progresso em relação aos seus objectos tradicionais. Se as deficiências da metafísica puderem ser superadas, é então possível pensá-la segundo um estatuto epistemológico similar ao das outras ciências. Contudo, se a psicologia (a alma), a cosmologia (o mundo), e a teologia (Deus) racionais estiveram impossibilitadas de construir um trajecto análogo ao seguro caminho das ciências, então dever-se-á elidir a pretensão ilusória de construir sistemas metafísicos fundados na ciência especulativa.
Julgamos ter já, de algum modo, esclarecido a posição kantiana a partir da descrição, ainda que sucinta, da sua doutrina sobre o conhecimento, nomeadamente, quando referimos que a Crítica visava a análise das formas a priori do espírito cognoscente. Na Estética procede ao estudo das intuições puras, ou seja, das formas a priori e universais (a idealidade do espaço e do tempo, condições de toda a experiência possível) onde se ordem as impressões facultadas pela sensibilidade. Na Analítica estuda o entendimento, o que significa a análise dos conceitos puros a priori (categorias) que são as condições transcendentais, necessárias do nosso conhecimento dos fenómenos.
O entendimento é, portanto, a faculdade dos conceitos. Mas a validade de um conhecimento objectivo está determinada, antes de mais, pelos juízos sintéticos a priori que permitem fornecer um conteúdo intuitivo aos conceitos. Ora, se tais juízos são válidos na matemática e na física, perdem qualquer validade objectiva no domínio da metafísica. As categorias não podem ser aplicadas para além dos fenómenos, só possuem legitimidade se forem preenchidas pelos dados da experiência. Assim, os objectos da metafísica (a alma, o mundo e Deus), como transcendentes, não podem ser nem analisados a partir de uma intuição sensível, nem constituir condições de uma experiência possível. É na Dialéctica que Kant se ocupa da possibilidade de pensar a metafísica como ciência, bem como da natureza e funcionamento da razão. Toda a pretensão de atribuir ao homem uma alma imaterial, imortal, substancial, não possui a objectividade de um conhecimento válido, pois não se funda numa intuição sensível. Analogamente, não pode justificar-se a liberdade do homem em oposição à causalidade necessária dos fenómenos, ou o carácter limitado ou ilimitado do cosmos. Também a existência de Deus não escapa à afirmação geral da impossibilidade da metafísica como ciência. Sendo assim, à dialéctica cumpre denunciar os erros e as ilusões da metafísica especulativa. Nela nada mais se pode produzir do que conhecimentos equívocos e contraditórios, os paralogismos da psicologia racional, onde se confundem condições formais a priori do conhecimento e objectos desse conhecimento, e as antinomias da cosmologia e da teologia racionais, em que proposições mutuamente contraditórias, tese e antítese sobre o carácter finito ou infinito do universo, ou sobre a existência ou não existência de Deus, são de igual modo afirmadas pela razão, em contradição consigo mesma.
Contra a metafísica dogmática, Kant propõe uma distinção entre saber e crença, que conduz, precisamente, a uma reestruturação racionalista do saber. Por outro lado, numa perspectiva mais espiritualista, a distinção conduz à valorização da crença a partir do reconhecimento da dupla natureza do ser humano. Enquanto fenómeno entre fenómenos, o homem está submetido ao determinismo das leis físicas que ordenam o mundo da experiência sensível, mas na sua dimensão numénica é radicalmente livre, pois as leis morais são imperativos de conduta, cuja obediência é voluntária (autonomia da vontade). Livre, pois produz em si e por si mesmo a sua própria causalidade ética. Estamos no domínio da função moral (prática) da razão, não já da função especulativa.

4. A metafísica não é possível como ciência. Só há conhecimento objectivo quando aos princípios formais ( a priori ) se acrescenta a sensação ou a experiência. A Dialéctica Transcendental é, como dissemos, uma crítica à ilegitimidade do entendimento e da razão pretenderem alcançar um conhecimento trans-fenoménico, ou seja, das coisas em si. Mas se é uma ilegitimidade, é simultaneamente uma tendência inevitável, traduzindo a própria natureza da razão que busca o incondicionado. Daí as perguntas formuladas acerca de Deus, da alma e do mundo como totalidade. Os objectos da metafísica são os que Kant designa por Ideias, categorias superiores correspondentes ás sínteses de juízos que são os raciocínios. Não nos proporcionando nenhum conhecimento válido, expressam o ideal da razão em encontrar leis e princípios cada vez mais gerais e sistemáticos.
As ideias transcendentais têm, pois, uma validez problemática no domínio da razão especulativa e uma validez moral como postulados da razão prática.

II


1. É na segunda parte deste trabalho que vamos, mais concretamente, proceder à analise " do uso regulativo das ideias da razão pura " - Apêndice à Dialéctica Transcendental -, inserto na Crítica da Razão Pura.
Kant procura esclarecer o que na Analítica Transcendental ficou provado: as ideias, como sínteses metafísicas elaboradas pela razão pura, têm um uso meramente regulativo. Se os conceitos puros do entendimento ( as categorias ) são constitutivos, pois fundam, estabelecem ( constituem ) o objecto do conhecimento, operando sínteses sobre a diversidade da experiência, as ideias têm como função regular e dirigir o entendimento, segundo princípios que lhe permita alargar o seu uso e torná-lo uniforme. " Por isso afirmo que as ideias transcendentais não são nunca de uso constitutivo, que por si próprio forneça conceitos de determinados objectos e, no caso, de assim serem entendidas, são apenas conceitos sofísticos (dialécticos). Em contrapartida têm um uso regulador excelente e necessariamente imprescindível, o de dirigir o entendimento para um certo fim... " Poder-se-á, assim, reconhecer um uso legítimo ou ilegítimo às ideias da razão. Esta é a faculdade que nos impele a perscrutar as leis e as condições cada vez mais gerais e que abarcam o maior número de fenómenos. Enquanto os raciocínios se processam dentro dos limites da experiência possível, ampliam com eficácia o conhecimento humano. Mas essa procura da máxima unidade conduz a razão, inevitavelmente, a ultrapassar as fronteiras do mundo fenoménico, em última instância, o incondicional absoluto. É a tendência natural do funcionamento da razão, cujas ideias transcendentais, contrariamente às categorias do entendimento, não produzem senão ilusões e aparências, ou seja, paralogismos e antinomias. Deus, alma e mundo constituem, segundo Kant, as ideias da razão que, não nos facultando nenhum conhecimento objectivo, desempenham uma função essencial no processo de construção da actividade cognitiva, enquanto expressam o ideal da razão que visa a máxima extensão e unidade.
Qualquer aplicação ilegítima das ideias transcendentais não é uma consequência das próprias ideias em si, mas apenas do seu uso, que pode ser " transcendente ou imanente, conforme se aplica directamente a um objecto que supostamente lhe corresponde, ou então apenas ao uso do entendimento em geral em relação aos objectos com que se ocupa ". A razão não pode constituir o conhecimento, é sempre enganosa a pretensão de lhe atribuir esse fim, pois não se relaciona directamente com os objectos empíricos, mas pode estabelecer certas directrizes, certas regras de carácter muito geral. A razão dirige o entendimento para um determinado fim. As regras do entendimento devem ser estruturadas em função de um princípio, que confere aos seus actos um carácter de sistematicidade, daí o uso regulativo, não constitutivo, das ideias da razão pura.
2. Em Kant há uma distinção clara entre a lógica formal e aquilo que designa por lógica transcendental. Tal distinção esclarece-nos sobre a posição do autor, relativamente à problemática da verdade. Procurando fundamentar e legitimar a validade do conhecimento dos objectos, ou seja, do conhecimento científico dos fenómenos (os juízos sintéticos a priori), recusa uma lógica que apenas atende à coerência interna e formal do pensamento consigo mesmo. O conhecimento objectivo não pode prescindir do mundo exterior, sob pena de ficarmos prisioneiros de noções sem nenhum conteúdo cognitivo. A lógica transcendental, sendo uma crítica ao formalismo lógico, é, simultaneamente, o estudo das condições transcendentais (a priori) que possibilitam o efectivo conhecimento dos objectos do mundo real. Estes são dados, como sabemos, à sensibilidade, que os ordena espacio-temporalmente, sendo sujeitos, num plano posterior, a uma nova síntese, operada pelas conceitos puros (categorias) do entendimento.
A construção do processo do conhecimento começa, pois, com a experiência (intuições), exigindo a intervenção das várias faculdades cognoscitivas, que actuam de acordo com uma finalidade própria em correspondência com o seu uso legítimo. Sendo assim, teremos de reconhecer que estamos perante um quadro que, ao revelar uma multiplicidade, uma diversidade prolixa das estruturas cognitivas (Herder manifestou-se contra essa divisão), não deixa de provocar um certo desconforto intelectual. Parece -nos, contudo, que a questão deverá ser deslocada, encarando-a segundo uma outra perspectiva. Por um lado, Kant refere-se muitas vezes à razão como o conjunto de todas as faculdades, o que traduz que a própria razão descobre a possibilidade de dar unidade a essa multiplicidade. O uno está no múltiplo dando-lhe coerência. Por outro lado, a separação é meramente metodológica. Trata-se de decompor a síntese, revelando, num processo analítico (químico), os elementos constituintes do todo.
De facto, a pluralidade das faculdades não implica qualquer descontinuidade, o contributo específico de todas elas (embora não tenhamos, ainda, feito qualquer referência à imaginação, esta é fundamental, como o diz, explicitamente, Kant, ao ordenar as aparências segundo modelos reconhecíveis - poder reprodutivo - e ao fazer a ligação entre as intuições isoladas e as respectivas categorias que lhes conferem significado - poder produtivo) remete para uma única forma, a consciência, a consciência transcendental, ou se quisermos, para o espírito que, através de sínteses sucessivas, molda a matéria-prima que é dada aos sentidos. Se dizemos que as categorias do entendimento procedem a uma segunda ordenação, tal não significa, em rigor, que se trate de um momento posterior às formas ordenadoras da sensibilidade, a distinção é apenas analítica ou abstracta. A unidade da consciência é a unidade das formas, das regras e dos princípios que, em conjunto, possibilitam a fundamentação da experiência. É na estrutura da consciência que se constitui o objecto do conhecimento, os fenómenos, segundo leis universais e necessárias. Como consequência, o conhecimento da realidade é uma síntese entre as condições transcendentais de um sujeito cognoscente e os objectos que aquele apreende nas suas formas. Daqui deriva a distinção entre fenómeno e númeno. Como não é possível uma intuição intelectual, ou seja, independente da experiência, estamos limitados à intuição sensível dos fenómenos, à aparência das coisas ( aparência porque se tratam de representações subjectivas a nível do sujeito universal), sendo o númeno o limite da experiência. Não há qualquer acesso, no domínio cognitivo, ao ser-em-si-mesmo que é apenas inteligível. Contudo, se Kant nega a cognoscibilidade do númeno, não nega a sua realidade ontológica. O idealismo transcendental é um realismo empírico, nesse sentido.
3. Se as ideias da razão pura não têm qualquer validade objectiva, pois não se dirigem a nenhum objecto da realidade, e reconhecida a tendência no sujeito para o uso dialéctico da razão, cumpre afirmar a necessidade do seu uso regulador, enquanto orientam o entendimento na busca de sínteses sucessivas e da máxima unidade nos limites da experiência. Diz Kant: " Se considerarmos em todo o seu âmbito os conhecimentos do nosso entendimento, encontramos que a parte de que a razão propriamente dispõe e procura realizar é a sistemática do conhecimento, isto é, o seu encadeamento a partir de um princípio. Esta unidade da razão pressupõe sempre uma ideia, a da forma de um todo do conhecimento que precede o conhecimento determinado das partes e contém as condições para determinar a priori o lugar de cada parte e sua relação com as outras. Esta ideia postula, por conseguinte, uma unidade perfeita do conhecimento do entendimento, mercê da qual, este não é apenas um agregado acidental, mas um sistema encadeado segundo leis necessárias. Não se pode propriamente dizer que esta ideia seja o conceito de um objecto, mas sim o da unidade completa destes conceitos, na medida em que esta unidade serve de regra ao entendimento ".
É na própria raiz da ilusão do uso dialéctico (sofístico) da razão (o que significa a negação da solução dogmática do problema metafísico) que é possível reconhecer um uso construtivo e positivo das ideias transcendentais, dos conceitos da razão, que, não sendo provenientes da realidade, funcionam como um quadro formal de princípios, em nome da máxima unidade e sistematicidade (regra imposta ao entendimento) que se pode exigir ao conhecimento fenoménico. Toda a investigação científica se organiza segundo um processo estabelecido pelos conceitos da razão que interrogam a natureza, visando um conhecimento adequado.
Kant sugere as classificações dos físicos como exemplo da finalidade das ideias, sendo toda a ideia uma regra para a razão. A classificação representa um modelo de divisão progressiva, um sistema em desenvolvimento, em que cada espécie se divide sucessivamente. Perante a multiplicidade dos fenómenos ( matérias ) físicos, estes são ordenados em grupos, de acordo com as suas semelhanças e diferenças. É assim possível identificar as partes constituintes de um todo. Ora, esta totalidade (em última instância, o " género único, supremo e universal "), a que as várias coisas se reduzem, é um conceito elaborado pela razão. Não tendo existência empírica, é o seu funcionamento que confere unidade sistemática ao mundo fenoménico, viabilizando a actividade de investigação.
4. As ideias da razão conferem, pois, a máxima unidade e a sistematização das regras do entendimento. Deste modo, elas podem assumir um papel fundamental, enquanto exercem uma função heurística e arquitectónica, com a condição de actuarem como princípios reguladores. Não são as ideias que são em si mesmas dialécticas, repita--se, mas o seu uso indevido é que pode ser dialéctico (sofístico), ou seja, consoante o uso que delas se possa fazer, as ideias favorecem o conhecimento, incentivando a razão na busca de sínteses sucessivas, ou conduzem a razão para erros e equívocos, quando esta pretende utilizar, ilegitimamente, os seus conceitos para conhecer uma realidade fora do domínio de qualquer experiência. Trata-se de uma ilusão transcendental e que está na base da crítica kantiana às disciplinas tradicionais da metafísica dogmática.
Se atendermos, então, ao uso imanente das ideias da razão, poderemos reconhecer o seu papel, disciplinado, orientando o entendimento no processo de pensar (julgar) os objectos do mundo sensível.
A actividade do entendimento é julgar, formular juízos. A actividade da razão é formular raciocínios, mais concretamente, raciocínios silogísticos. A actividade intelectual não se confina, pois, ao acto do juízo. A razão, como consequência do seu pendor ínsito em procurar condições mais abrangentes, visa abarcar a pluralidade dos juízos particulares, dando-lhes a unidade sintética que lhes serve de fundamento. É na estrutura do acto de raciocinar que o interesse especulativo da razão a leva a formar ideias transcendentais. Nenhuma ideia representa a experiência, porque cada uma diz respeito à totalidade da experiência ( o incondicional ), seja o sujeito absoluto, seja a totalidade dos objectos fenoménicos, ou a causa absoluta do todo da realidade. As ideias são, por isso mesmo, ideias, carecem de conteúdo objectivo, pois, não integrando o conteúdo das intuições sensíveis, ultrapassam a experiência, como já o afirmámos. Mas este papel subjectivo da razão é essencial e insubstituível, funciona como cânone relativamente ao entendimento, permitindo-lhe alargar o seu uso e torná-lo coerente e uniforme. As ideias não permitem constituir conhecimento, esse é o campo legislador do entendimento, mas introduz insatisfação, impelindo este para o incondicional, para o ideal incognoscível, que se institui como apelo permanente à máxima unidade e extensão. " Daqui só se depreende que a unidade sistemática ou unidade racional dos conhecimentos diversos do entendimento é um princípio lógico que, mercê de ideias, ajuda o entendimento sempre que este, por si só, não baste para atingir regras e, simultaneamente, conferir uma unidade fundada sobre um princípio ( uma unidade sistemática ), à diversidade das regras, assim criando uma ligação tão extensa quanto possível " .
Mas à condição da razão associa-se, ainda, um outro papel transcendental: " a unidade sistemática, não só subjectiva e logicamente, como método, mas também objectivamente ". Esta unidade, que enquanto pressuposição, refere Kant, esteve sempre presente " nos princípios dos filósofos ", diz respeito à harmonização necessária entre a forma e a matéria dos fenómenos, que viabiliza a possibilidade de se construir um conhecimento objectivo da natureza. É transcendental, porque não deriva dos actos repetidos da experiência contingente, segundo princípios de representação racional. É um princípio a priori da razão, que conduz a interpelar os objectos segundo a necessidade de uma unidade sistemática que lhes é inerente, " pois, com que direito pode a razão exigir que, no uso lógico, se trate como unidade simplesmente oculta a diversidade das forças que a natureza nos dá a conhecer e se derivem estas, tanto quanto se pode, de qualquer força fundamental, se lhe fosse lícito admitir que seria igualmente possível que todas as forças fossem heterogéneas e a unidade sistemática da sua derivação não fosse conforme com a natureza? " .
Os conceitos a priori do entendimento permitem instituir o princípio de unidade fundadora ao conjunto das nossas representações, podendo referir-se a uma diversidade de outros conceitos, abarcando uma pluralidade de fenómenos. Mas esta função de síntese exercida pelo entendimento, por intermédio das categorias, diz apenas respeito ao ponto de vista da forma dos fenómenos, sendo necessário atender ao papel desempenhado pelas ideias da razão, relativamente ao conteúdo, à diversidade material dos objectos existentes. Não é que a razão legisle sobre a matéria dos fenómenos, ela nunca se dirige directamente aos objectos, mas ao entendimento, viabilizando-o e legitimando os seus actos que se orientam para um determinado fim. É a máxima unidade que a razão visa que exige que as ideias correspondam com a matéria dos fenómenos, e reciprocamente. A correspondência (a unidade) é, contudo, apenas simbolizada, suposta, pois não é dada nos objectos da experiência fenoménica. Trata-se, efectivamente, de uma correspondência problemática (problematizante), de uma validade objectiva mas indeterminada, mobilizando o conhecimento a empenhar-se na busca, até ao infinito, de uma suposta unidade sistemática. A razão não afirma que tal unidade possa constituir objecto de conhecimento, indica-a como regra a seguir ( princípio transcendental, uso da razão ), como horizonte de toda a investigação que se confina aos limites impostos pela experiência (uso imanente das ideias transcendentais). " Na diversidade de uma experiência possível deve supor-se, necessariamente, uma homogeneidade (embora não possamos determinar a priori o seu grau), porque, sem esta, não haveria mais conceitos empíricos, nem, por conseguinte, experiência possível ".
A razão prepara o horizonte onde os actos do entendimento se vão exercer, segundo os princípios da máxima unidade ( princípio da homogeneidade ), da máxima diversidade ( princípio da especificação ) e da afinidade de todos os conceitos ( princípio da continuidade das formas ). Estas três leis constituem a unidade sistemática dos princípios lógicos. " A primeira lei impede, pois, a dispersão na multiplicidade de diversos géneros originários e recomenda a homogeneidade; a segunda, por sua vez, restringe este pendor para a uniformidade e impõe a distinção das sub-espécies, antes de nos voltarmos para os indivíduos com o nosso conceito geral. A terceira reúne ambas, prescrevendo a homogeneidade na máxima diversidade pela passagem gradual de uma espécie para outra, o que indica como que um parentesco entre os diferentes ramos, na medida em que todos provêm dum tronco comum ".
Kant explicita a unidade sistemática dos princípios lógicos a partir da unidade dos conceitos. Pensar um conceito implica reconhecer que ele não existe isolado no pensamento, mas que se encadeia com o recurso a uma diversidade de conceitos com os quais estabelece relações. Cada conceito constitui uma malha onde se integram outros conceitos ( a divisão lógica implica sempre alguma extensão, nunca indivíduos ), ou seja, cada espécie subdivide-se em sub-espécies, segundo o princípio da especificação. Por seu turno, o princípio da homogeneidade garante que as diversas espécies se incluam em estruturas mais amplas, " ou seja, géneros determinados por outros tantos conceitos, de onde todos se abrangem como a partir de um ponto central, que é o género superior, até que por fim se chega ao género supremo, o horizonte geral e verdadeiro, que é determinado a partir do ponto de vista do conceito supremo e contém em si toda a diversidade de géneros, espécies e sub-espécies ". Assim, não há espaços por preencher entre os conceitos, todos os géneros derivam de um género " único, supremo e universal " , e as espécies dividem-se sempre em outras espécies intermediárias.
A lei da continuidade das formas, que reúne as outras duas leis, não deriva da experiência, é apenas uma ideia, o que significa que o seu fundamento é transcendental, uma ideia pura da razão. É ela que permite supor, problematicamente, a unidade sistemática dos objectos da natureza, pois, " ... não nos indica o menor sinal da afinidade pelo qual devemos procurar a sucessão gradual da sua diversidade, mostrando-nos até onde é possível chegar, mas dando-nos apenas uma indicação geral de que devemos procurá-la ".
A razão, como já o afirmámos, visa a unidade completa segundo os princípios da homogeneidade, da especificação e da afinidade. Mas esta é uma unidade racional, mediante ideias, não a unidade da experiência. O princípio para que tende é o de procurar o incondicional, no sentido de assegurar a máxima unidade dos conhecimentos do entendimento. As ideias puras da razão, embora não determinem objectivamente o conhecimento dos objectos, pois nunca se reportam directamente às representações fenoménicas, funcionam como regra que deve dirigir os conceitos do entendimento para a máxima unidade e sistematicidade.
Kant estabelece uma analogia entre os esquemas da sensibilidade e o esquema da ideia da razão. Se os conceitos do entendimento são indeterminados, são vazios, sem o conteúdo fornecido pelos fenómenos (impressões sensíveis dadas no espaço e no tempo), a unidade sistemática para que a razão tende é indeterminada em si mesma. Por outras palavras, a síntese racional é uma unidade vazia, pois falta-lhe conteúdo, nenhuma intuição pode preencher a unidade completa dos conceitos do entendimento. Contudo, essa indeterminação não deixa de constituir, problematicamente, validade objectiva, enquanto projecto da ideia de unidade do entendimento segundo um único princípio. " Portanto a ideia da razão é o análogo de um esquema da sensibilidade, mas com esta diferença: a aplicação dos conceitos do entendimento ao esquema da razão não é um conhecimento do próprio objecto (como a aplicação das categorias aos seus esquemas sensíveis), mas tão só uma regra ou um princípio da unidade sistemática de todo o uso do entendimento. Tal como todo o princípio, que assegura a priori ao entendimento a unidade integral do seu uso, vale também, embora indirectamente, para o objecto da experiência, os princípios da razão pura também terão realidade objectiva em relação a esse objecto, não para determinar algo nele, mas tão só para indicar o processo pelo qual o uso empírico e determinado do entendimento, pode estar inteiramente de acordo consigo mesmo, em virtude de se ter posto em relação, tanto quanto possível, com o princípio da unidade completa e daí ter sido derivado ".

5. Kant emprega o termo " máxima " tanto no campo da Razão Prática (princípio subjectivo da volição ) como no campo da Razão Teórica. No Apêndice significará o interesse (a razão confronta-se com a unidade dos seus interesses) especulativo da razão, que, atendendo aos seus princípios subjectivos, visa projectar o conhecimento no sentido da unidade completa dos objectos da experiência. Como dissemos, esta unidade não é dada em nenhuma intuição (não possuímos intuição intelectual, mas apenas sensível), o que implica que os princípios da razão não são princípios objectivos, ou seja, não derivam dos objectos, somente são interesses da razão em dirigir o uso do entendimento para um determinado fim, a síntese racional da diversidade dos conceitos.
Como princípios subjectivos são princípios reguladores, não existindo qualquer conflito entre si, pois o interesse da razão é, nesse sentido, unitário, embora se possa atender aos diferentes modos de organizar o pensamento. O conflito entre os princípios resulta de um duplo equívoco, o de se considerarem como constitutivos, isto é, como princípios que constituem o objecto do conhecimento, e do facto de se atribuir relevância a um determinado interesse em relação aos outros. Pelo contrário, reconhecendo a própria natureza e tendência da razão, " o método que consiste em procurar a ordem na natureza de acordo com um tal princípio e a máxima que considera essa ordem fundada numa natureza em geral, embora sem determinar onde e até que ponto reina essa ordem, constituem, sem dúvida, um legitimo e excelente princípio regulativo da razão; como tal, vai longe de mais para que a experiência ou a observação lhe possam ser adequadas; mas, sem que nada determine, aponta somente o caminho da unidade sistemática ".


III


A " Crítica da Razão Pura " é uma das obras maiores da produção filosófica Ocidental. Publicada em 1781 (com alterações substanciais numa segunda edição de 1787), surge num contexto de profunda crise da racionalidade. Sendo um tratado do método, é também uma reflexão sobre os pressupostos e as condições do próprio discurso filosófico, ou seja, é uma metafilosofia. A leitura da Crítica permite-nos o contacto com algumas das problemáticas que, de um modo ou de outro, vieram preencher a modernidade e a contemporaneidade, como o são, concretamente a esta época, as questões relativas às características definidoras do discurso filosófico, no seu processo de organização argumentativo e comunicacional (é manifesta a influência de Kant em Habermas e Apel na teorização de uma " ética da comunicação " , assim como na análise e ponderação do discurso retórico, discurso que tem constituído objecto de reflexão para a valorização de uma " nova retórica "). Também a noção de sistema, que esteve sempre presente no processo de construção do saber filosófico (tanto na assunção como na recusa), mereceu de Kant a atenção própria de quem se interroga sobre as possibilidades de empreender processos de formalização sistemática.
Se Kant representa uma das vozes mais audíveis da Aufklarung, não deixa, contudo, de a superar. Através de uma heurística transcendental, introduz limitações a uma razão totalitária, anunciando uma época que construiu um discurso na afirmação dessas mesmas limitações. A possibilidade do conhecimento tem como referência o limite imposto pela experiência. A ciência é ciência dos fenómenos, perdendo toda a legitimidade o discurso metafísico na sua pretensão de ir além do plano fenomenal. A razão kantiana distancia-se da razão dogmática cartesiana, dado que o seu funcionamento admite apenas um uso imanente, ou seja, serve de directriz, de regra, para a unidade sistemática dos conceitos do entendimento. Nenhum objecto nos pode dar a unidade completa da experiência, mas é do interesse da razão que a investigação prossiga na busca da máxima sistematicidade. Daí se poder falar da validade objectiva dos princípios subjectivos da razão, embora se trate de uma validade indeterminada (nada determina), problemática.
A obra kantiana é uma obra aberta, ela permite repensar, em novas coordenadas, a metafísica, a filosofia e a sua histórica. Não é difícil encontrar na contemporaneidade os sinais de um autor que foi muito mais longe, como dissemos, que os pressupostos abertos pelo Iluminismo, desde a nova historiografia da ciência, até às concepções fundamentais da problemática do fenómeno estético ( na primeira parte da Crítica da Faculdade de Julgar formula-se uma teoria estética sobre a definição do belo e do gosto, além de uma explanação sobre a questão da genialidade; particularmente interessante é a elaboração de uma estética do sublime), não esquecendo a pertinência das suas posições relativamente ao papel da humanidade na história como processo a realizar (a presença da ideia de infinito ou de indefinido acompanha Kant em todas a suas reflexões), em cujo conteúdo é, de facto, possível detectar uma grande actualidade. Por outro lado, a afirmação do primado da racionalidade prática, que a estrutura da razão revelou, conduz-nos para as questões que atravessam, com a maior acuidade, a problemática ética contemporânea (Rawls, por exemplo, é um dos autores marcado, pelo menos numa primeira fase, pelo pensamento kantiano).
Mas obra aberta ainda pelo próprio Kant. É assim que poderemos entender a redacção do Apêndice ( que aprofundará na Crítica da Faculdade do Juízo ), bem como as alterações à segunda edição da Crítica. Mais do que um problema de método, o que está em causa é uma concepção orgânica da razão ( e da filosofia ), entendendo-a como um organismo ( o orgânico como paradigma, como metáfora ) que se vai construindo e definindo no seu próprio processo vital de elaboração. O pensamento é uma estrutura criadora de conceitos, impondo ordem, sistematizando, formalizando o caos da matéria. Do caos à ordem, do inorgânico ao orgânico, pensar é retomar sempre de novo uma tarefa infinita, inacabada, cuja proporção é determinada pela pregnância da desordem, ou seja, há sempre um excesso que assedia o saber, racionalidade que, deste modo, permanece, inconclusiva. O Apêndice é uma actividade que reescreve a ordem crítica na Crítica, é uma re-(es)crítica.



BIBLIOGRAFIA


KANT, I., " Apêndice à Dialéctica Transcendental ( do uso regulativo das ideias da razão pura ) " em Crítica da Razão Pura, tr. de Manuela Pinto dos Santos, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.
KANT, I., Crítica da Razão Pura, tr. de Manuela Pinto dos Santos, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.
DELEUZE, G., A Filosofia Crítica de Kant, tr. de Geminiano Franco, Lisboa, Edições 70, 1983.
LACROIX, J. , Kant e o Kantismo, tr. de Maria Manuela Cardoso, Porto, Rés-Editora, sem data.

Como Corpo

Experimento a literatura como barco, a luz brilha na cratera dos apontamentos, nunca é tarde, os nomes virão mais tarde, à superfície do véu móvel dos dias. Experimento as páginas para ler sob as árvores,
sob as aves, as aves mobilizadas pela atmosfera límpida, as árvores mobilizadas pela relva, no verde das planícies areadas. As aves escavam o céu, o mar azulado, transparente, o fulgor da espuma inspira-me a escrever na impaciência,
a descrever até à exaustão o que os olhos introduzem na câmara depurada das imagens: o corpo é simétrico ao desejo, aos sulcos do desejo, as veias produtivas do corpo, é nos teus ombros que ondula a euforia do ar,
palavras numa lógica ausente. Afirmo: vulnerável ao desejo inerente desejo. Onde estou sem nenhuma epístola, apenas os lagos da anamnese, a teoria possível de uma verdade multiplicável.
Experimento a literatura como corpo, o espelho brilha na sala aberta às sombras da casa, deambulo num prazer evocativo, na orientação de um pulso, encosto os dedos ao som, o sangue do teu pulso pulsa na corrente, como barco, como barco.
Como corpo. Como corpo.

Sentir o Corpo

As cortinas dançam e se perguntarmos e se lermos, se estendermos os olhos, dançam as vestes nos vidros côncavos, em espelhos ao vento quando a pulsação da relva desliza pelo esmalte da manhã. Esmalta a luz do parque na alimentação diária da nossa fome. A nossa fome. Os cavalos ágeis que há nas horas, uma casa vivida nesses bosques diáfanos. Fizemos da arte literárias sílabas, amplas para conter a exiguidade dos nomes. Rio-me da beleza do tema, aprofundo a respiração na água náufraga da garganta. Rasgo a pele, um sentimento extenso na apoteose do mar. Dançam os membros e a curva ondulada no silêncio benigno das aves. Queria sentir, sentir a forma perscrutada do corpo que brilha entre cabelos e seios e pernas e cuspos e ancas, estreitos os ombros para abraçar os ombros de marcas digitais, escrever neles as letras coadas da obstinação. As cortinas vividas na euforia dos vidros profundos, quando a casa repleta de sílabas desenha o volitivo brilho ainda dum sulco luminoso nos espelhos. Dessa hora, gravo nos veios ou veias do esmalte o cetim translúcido da manhã. A boca ontológica que há nas horas, a febre num encalço por este espaço corpuscular.

Lábios

Os efémeros lábios em diálogo, lábios e lábios,
a noite passa entre corpos distantes, indecifráveis
objectos que continuamente voam pela nossa
indiferença. Tudo nos é indiferente.Temos a insónia,
a substância da insónia azul e areada, imagens imensas
caídas lentamente pelos ombros, a noite completa
afinal, os teus lábios coando a luz exterior da janela
dos lábios.

Repara nos lábios, a abertura do corpo como todos os lábios, toca com os dedos aqueles lábios ou com os lábios,
aproveita a noite das palavras para dizer o corpo que se une ao seu silêncio, a matéria do corpo eloquente sob os laços.

E nada mais, porque aí só o desconhecido atordoa
o fio dos lábios.

Na noite, quando a insónia ronda a velatura dos olhos,
olhar-te
imbuída a luz desta sombra de lábios.

Move os lábios pelas hastes do meu corpo.
Movo lábios pelos múltiplos lábios do teu corpo.

Em silêncio, decompomos o corpo.

Assim, sendo efémeros por um instante. Ou eternos.

Sentidos

A expectativa da emoção, conjugar o último verbo que emergir nos lábios – ficasse nas veredas do dia para inventar um sentido.
Deixo que a hora absorva a luz, de todas as sombras fluem imagens insones, entrego a interpretação ao olhar, a definição sem sentido de um instante profundo.
Sentindo pelas escarpas do ar o voo das aves e caminhar com as mãos nos bolsos a favor do vento, houve um dia coroado de nomes no litoral da alma e acenderam-se candeeiros pelos pulsos.
Nas veredas do dia – quando o dia era único e a sua boca - e a espuma no areal celebrava o festim dos corpos. Poder sentir a pele límpida contra a pele, olhar-te absorta contra o mar ou o amor na cúpula das ondas.
Estendidos sob o sono líquido, na língua líquida do sal, ouço as veias declinar o lume inadiável dos sentidos. Perscrutar o palco do íntimo desejo – dedilhara a água pela falésia dos ombros. Nada mais haver para possuir um dia, nem entender a viagem póstuma dos navios,

ficasse nas veredas do sentido,
quando a expectativa silente da emoção.

Keats

Nem sei o que dizer. Keats era singular, absolutamente singular. Os amigos diziam dele, ele é singular. Eu afirmo: Keats é singular, sou amigo dele, era amigo dele, mas ele morreu. Posso ainda dizer, ele que morreu, sou amigo dele? Gosto de dizer que ainda sou amigo dele. Sou amigo dele, que importa que Keats tenha morrido. Aliás, pergunto: ele morreu? Não sei. O seu corpo nunca foi encontrado. Um corpo que nunca foi encontrado significa que a identidade desse corpo morreu? E o que morre de nós? Morrer é deixar de ser visto, dizia o poeta. Keats desapareceu, eu nunca mais o vi. Morreu? Se o poeta tem razão, se tem razão o poeta, Keats deixou de ser visto, logo morreu. Mas pode estar onde ninguém o pode ver. Keats pode estar vivo, mas quem o pode ver não o vê, logo Keats morreu. Quero dizer que quem o pode ver é quem conhece Keats, quem não o conhece quem o vê não sabe quem é Keats, logo não o vê. Assim, se o poeta tem razão, morremos apenas para quem sabe quem somos quando desaparecemos, e estamos desde sempre mortos, ou melhor, nunca existimos, para quem nunca soube ou sabe quem somos. Logo: estamos sempre vivos e mortos, depende, depende de o poeta ter razão. Quem sou onde ninguém sabe de mim? Sou um morto, sou uma não existência, não sou, nunca existi. Mas Keats, no reino dos que o conheceram e lhe chamaram Keats, e lhe chamavam Keats, desapareceu, logo deixou de ser visto, logo morreu. O seu corpo desapareceu. Bem, era uma manhã de céu límpido, talvez um domingo, não havia o trânsito infernal na marginal, rotina diária dos cidadãos em busca da sobrevivência que os leva para a clausura insuportável de tarefas inúteis. Keats tinha escrito num caderno de apontamentos este texto: "Grupos de seres preocupados com a aparência física corriam de sapatilhas no asfalto e sentiam que era fácil ser feliz em qualquer domingo, ser feliz e saudável e jovem e bom cidadão e bom pai e bom marido ou esposa ou mãe e filho e empregado ou patrão, mesmo governante e banqueiro e operário e prostituta e chulo e ladrão e pedófilo e religioso como padre e laico e criminoso e ladrão e tudo o mais, tudo o mais que faz de cada um qualquer um que corre de sapatilhas numa manhã de domingo embalado pela ilusão de ser feliz. Ser feliz ao domingo é a felicidade verdadeira de ser feliz, por isso se começa cedo a pensar no domingo para se ser feliz. Mas Keats, eu que sou amigo dele, ou fui amigo dele, sei do sofrimento dessa felicidade ao domingo. Essa náusea de ser domingo, essa náusea de ser ou existir num domingo qualquer, toda essa náusea de sentir náusea por saber que há domingo. O íntimo da felicidade é a verdadeira náusea, só ao domingo inexoravelmente podemos ter consciência de como a vida se pode transformar numa náusea insuportável. As missas ao domingo, os almoços de domingo, os passeios de domingo, o domingo de Páscoa, o descanso ao domingo, as filas para o comércio ao domingo, as praias ao domingo, o amor ao domingo, e o ciúme e o teatro e o cinema e a angústia e a melancolia e a chuva ou o sol, o campo ou as praias, a banalidade e a vacuidade ao domingo, tudo isso, mesmo a infância ao domingo e os casamentos religiosos e civis, a doença e a morte, a crença em deus e nos santos ao domingo, tudo isso, tudo isso provoca um tédio e a tal náusea que leva alguém a morrer para não saber que é domingo. Talvez Keats tenha morrido. Talvez eu, que sou amigo ou fui amigo de Keats, não veja mais o meu amigo, ele deixou de ser visto e era domingo. Keats era singular, amava o amor, amava amar o amor. Não sei se continuo a falar desse amor pelo amor, da sua imaginação, da preocupação em imaginar um objecto amável, a sua crença na mulher como ser perfeitamente amável, único para ser amado, a mulher perfeita para não se imaginar em nenhum domingo. Dessacralizada, mundana, corpórea e espiritual, deusa grega, Vénus, sábia, nunca santa, Afrodite, nunca Maria, andando desvairada pelos bosques, bacante, o desejo de ser possuída e possuir, nunca dos remédios, mas do prazer, da pele, do contacto, da energia, das pulsões, recusa absoluta da ideia de pecado, deusa de todos os excessos, deusa do riso, da alegria, nunca das dores, nunca da lástima da agonia. Não sei se continuo a falar de Keats, de uma vida vulgar. Nem sei se eu próprio não sou Keats. Passeava pela marginal, a manhã estava clara, o céu estava límpido. Um sentimento de tédio, de náusea, o mar ali no horizonte, a profundidade do horizonte, do mar. Os barcos à entrada do porto, as mercadorias por descarregar, era domingo, o silêncio sobre as minhas pálpebras, o silêncio. Havia a multidão anónima e aquela tristeza sem explicação. Aquela tristeza em mim. A imaginação de imaginar as deusas pelos bosques, as deusas de vestes brancas correndo de pés nus sobre uma relva até ao infinito. E os ombros reflectiam a luz, a luz diáfana vinda do horizonte, as vestes caiam suavemente desde os seios, a brancura dos seus corpos por essa claridade límpida que as sorvia até à luz - plena e inextinguível. Aquelas deusas, aquelas mulheres, que mais há para falar da luz? Keats gostava de ver o mar, sentir que fazia parte do mar, fazia parte da sua imaginação, corria nas veias uma certa maré sem destino, o pulso como o coração do mar, entrar para dentro, por dentro, o amor do mar, o outro lado onde as deusas riem da morte, riem da morte, riem dela mesmo sendo domingo. Fala-me de Keats, ele ou eu, não sei de quem falar a quem." Terminava assim, curiosamente, terminava assim.