quarta-feira, 13 de abril de 2011

Keats

Nem sei o que dizer. Keats era singular, absolutamente singular. Os amigos diziam dele, ele é singular. Eu afirmo: Keats é singular, sou amigo dele, era amigo dele, mas ele morreu. Posso ainda dizer, ele que morreu, sou amigo dele? Gosto de dizer que ainda sou amigo dele. Sou amigo dele, que importa que Keats tenha morrido. Aliás, pergunto: ele morreu? Não sei. O seu corpo nunca foi encontrado. Um corpo que nunca foi encontrado significa que a identidade desse corpo morreu? E o que morre de nós? Morrer é deixar de ser visto, dizia o poeta. Keats desapareceu, eu nunca mais o vi. Morreu? Se o poeta tem razão, se tem razão o poeta, Keats deixou de ser visto, logo morreu. Mas pode estar onde ninguém o pode ver. Keats pode estar vivo, mas quem o pode ver não o vê, logo Keats morreu. Quero dizer que quem o pode ver é quem conhece Keats, quem não o conhece quem o vê não sabe quem é Keats, logo não o vê. Assim, se o poeta tem razão, morremos apenas para quem sabe quem somos quando desaparecemos, e estamos desde sempre mortos, ou melhor, nunca existimos, para quem nunca soube ou sabe quem somos. Logo: estamos sempre vivos e mortos, depende, depende de o poeta ter razão. Quem sou onde ninguém sabe de mim? Sou um morto, sou uma não existência, não sou, nunca existi. Mas Keats, no reino dos que o conheceram e lhe chamaram Keats, e lhe chamavam Keats, desapareceu, logo deixou de ser visto, logo morreu. O seu corpo desapareceu. Bem, era uma manhã de céu límpido, talvez um domingo, não havia o trânsito infernal na marginal, rotina diária dos cidadãos em busca da sobrevivência que os leva para a clausura insuportável de tarefas inúteis. Keats tinha escrito num caderno de apontamentos este texto: "Grupos de seres preocupados com a aparência física corriam de sapatilhas no asfalto e sentiam que era fácil ser feliz em qualquer domingo, ser feliz e saudável e jovem e bom cidadão e bom pai e bom marido ou esposa ou mãe e filho e empregado ou patrão, mesmo governante e banqueiro e operário e prostituta e chulo e ladrão e pedófilo e religioso como padre e laico e criminoso e ladrão e tudo o mais, tudo o mais que faz de cada um qualquer um que corre de sapatilhas numa manhã de domingo embalado pela ilusão de ser feliz. Ser feliz ao domingo é a felicidade verdadeira de ser feliz, por isso se começa cedo a pensar no domingo para se ser feliz. Mas Keats, eu que sou amigo dele, ou fui amigo dele, sei do sofrimento dessa felicidade ao domingo. Essa náusea de ser domingo, essa náusea de ser ou existir num domingo qualquer, toda essa náusea de sentir náusea por saber que há domingo. O íntimo da felicidade é a verdadeira náusea, só ao domingo inexoravelmente podemos ter consciência de como a vida se pode transformar numa náusea insuportável. As missas ao domingo, os almoços de domingo, os passeios de domingo, o domingo de Páscoa, o descanso ao domingo, as filas para o comércio ao domingo, as praias ao domingo, o amor ao domingo, e o ciúme e o teatro e o cinema e a angústia e a melancolia e a chuva ou o sol, o campo ou as praias, a banalidade e a vacuidade ao domingo, tudo isso, mesmo a infância ao domingo e os casamentos religiosos e civis, a doença e a morte, a crença em deus e nos santos ao domingo, tudo isso, tudo isso provoca um tédio e a tal náusea que leva alguém a morrer para não saber que é domingo. Talvez Keats tenha morrido. Talvez eu, que sou amigo ou fui amigo de Keats, não veja mais o meu amigo, ele deixou de ser visto e era domingo. Keats era singular, amava o amor, amava amar o amor. Não sei se continuo a falar desse amor pelo amor, da sua imaginação, da preocupação em imaginar um objecto amável, a sua crença na mulher como ser perfeitamente amável, único para ser amado, a mulher perfeita para não se imaginar em nenhum domingo. Dessacralizada, mundana, corpórea e espiritual, deusa grega, Vénus, sábia, nunca santa, Afrodite, nunca Maria, andando desvairada pelos bosques, bacante, o desejo de ser possuída e possuir, nunca dos remédios, mas do prazer, da pele, do contacto, da energia, das pulsões, recusa absoluta da ideia de pecado, deusa de todos os excessos, deusa do riso, da alegria, nunca das dores, nunca da lástima da agonia. Não sei se continuo a falar de Keats, de uma vida vulgar. Nem sei se eu próprio não sou Keats. Passeava pela marginal, a manhã estava clara, o céu estava límpido. Um sentimento de tédio, de náusea, o mar ali no horizonte, a profundidade do horizonte, do mar. Os barcos à entrada do porto, as mercadorias por descarregar, era domingo, o silêncio sobre as minhas pálpebras, o silêncio. Havia a multidão anónima e aquela tristeza sem explicação. Aquela tristeza em mim. A imaginação de imaginar as deusas pelos bosques, as deusas de vestes brancas correndo de pés nus sobre uma relva até ao infinito. E os ombros reflectiam a luz, a luz diáfana vinda do horizonte, as vestes caiam suavemente desde os seios, a brancura dos seus corpos por essa claridade límpida que as sorvia até à luz - plena e inextinguível. Aquelas deusas, aquelas mulheres, que mais há para falar da luz? Keats gostava de ver o mar, sentir que fazia parte do mar, fazia parte da sua imaginação, corria nas veias uma certa maré sem destino, o pulso como o coração do mar, entrar para dentro, por dentro, o amor do mar, o outro lado onde as deusas riem da morte, riem da morte, riem dela mesmo sendo domingo. Fala-me de Keats, ele ou eu, não sei de quem falar a quem." Terminava assim, curiosamente, terminava assim.

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